A principal estrada da Feira de Manaus Moderna é o Rio Negro, onde os navios transportam todos os tipos de produtos terrestres e aquáticos, desde frutas até peixes.
Funcionando na orla da cidade, o local amanhece abarrotado de feirantes, carreteiros, flanelinhas,
agenciadores de viagens, motoristas, condutores de embarcações, gente fazendo bico. Caminhões e carros formam filas.
Frutas lançadas de mão em mão até chegar à banca de destino podem atingir quem passa de maneira distraída. O local é considerado a entrada e a porta de saída da cidade de Manaus.
Mas a modernidade fica só no nome: embora milhares de pessoas dependam do fluxo da Feira de Manaus Moderna para sobreviver, ela parece ter sido abandonada há anos. A última vez que recebeu reforma foi em 2015. Arthur Virgílio Neto (PSDB), prefeito à época, investiu R$ 950 mil em estruturas que já se deterioraram. Sobre os remendos de um lugar pouco cuidado vieram mais avarias.
Desde o final de abril, o Rio Negro, sempre tão calmo, começou a engolir a cidade. É normal que o nível da água suba por esses tempos, mas em 2021 a rapidez da cheia impressionou. Na quartafeira (26), o rio estava 29,92 m mais alto. Esta já é a segunda maior cheia da história do Amazonas desde 1902, ano em que os dados passaram a ser coletados
Companheiro traiçoeiro
As mulheres e os homens do Amazonas estão acostumados a ter a vida afetada pelo Negro — um amigo desejável e ao mesmo tempo perigoso. No livro “O rio comanda a vida”, do paraense Leandro Tocantins, essa associação é descrita como “quase mística”, vínculo que transforma os humanos e o rio em seres indissociáveis. “Amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois sem ele o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguraram a presença humana, embelezaram a paisagem, fazem girar a civilização — comandam a vida no anfiteatro amazônico.”
Com a perspectiva de que os picos de água aconteçam nos meses de junho e julho, o que se pode esperar é uma devastação ainda maior. Essas perturbações não são vistas da mesma forma por todos os manauaras. Alguns consideram o momento histórico algo digno de ser contemplado. Famílias, jovens e adultos começaram a frequentar o centro da cidade para fazer selfies, fotos de comparações de “antes” e “depois”. Chamam a cidade de “Veneza dos Trópicos”. Em um desses casos, a drag queen Pablo Lima resolveu se vestir de sereia e fazer um ensaio fotográfico deitada na água. Usando máscara, ela disse que estava fazendo fotos para as redes sociais e foi entrevistada por jornalistas. Pablo Lima conseguiu mais de 10 mil seguidores no Instagram após a performance
Água pelos joelhos
A enchente inundou a feira, as praças, as ruas e todo o comércio do centro de Manaus. É impossível andar sem ter água pelos joelhos. A prefeitura está construindo pontes de ferro nas zonas mais visíveis, mas dentro da feira o chão de concreto se transformou em madeira. Para acessar o local é obrigatório passar por pontes feitas com tábuas e pregos.
A sensação é de pisar em falso. As estruturas improvisadas não suportam o peso de tanta gente e balançam quando os clientes caminham. O lugar é grande, mas cheio de corredores que parecem labirintos. Era de se esperar que o local fosse interditado, mas paralisar o funcionamento da feira é quase impossível. A água só assusta a quem não trabalha ali.
José Mariano, 60, feirante que vende legumes e frutas, passou por quase todas as grandes enchentes de Manaus. Saindo do Maranhão para procurar trabalho, chegou à cidade em 1985 e em 1990 se instalou no entorno da feira. Com esforço, consegue tirar R$ 3 mil por mês.
Feira flutuante
A Prefeitura de Manaus construiu uma balsa para transferir 200 comerciantes que não terão condições de permanecer na feira. A maioria deles vende peixe e produtos processados.
A balsa funciona a poucos metros do local e divide opiniões. Quando o nível da água aumentar, os clientes deverão sentir mais dificuldade para acessar o local, o que preocupa os vendedores.
A banca de Andreza Cristina Traude, 32, deve ser transferida. Ela trabalha há oito anos vendendo frango. Enquanto atendia a clientela, conversou com a reportagem de TAB. “Tem muito feirante que não quer [sair]
Não pode parar
Todos os dias as águas invadem mais um pouco da cidade. Ruas e avenidas estão sendo interditadas e os igarapés estão transbordando de lixo. A crise sanitária se agrava com o material sendo jogado na cidade, pelo rio que sobe. Já foram retiradas mais de 600 toneladas de lixo do Rio Negro.
Em meio à pandemia, com a grande falta de emprego, é impensável para ela deixar seu trabalho. Ela não cogita outra hipótese a não ser ficar. “Temos que estar preparados para tudo. Se encher mais, não tem o que fazer, tem que trabalhar, não pode parar, né? Tem família pra sustentar, tem que vir trabalhar.”
Via: UOL